terça-feira, 17 de abril de 2012

QUALQUER COINCIDÊNCIA É MERA SEMELHANÇA: Um piscar de olho



Dentro de um enquadramento rígido e monótono, ele passou a ver o mundo.
Não importavam as suas vontades, medos, os seus desejos, suas vergonhas... Nada era percebido. Talvez, parte disto era suposto pela equipe que passou a acompanhá-lo. Agora, uma nova forma de alimentação, medicação, rituais de higiene e reabilitação tornaram-se parte de sua rotina. Por mais humanizada que aquela abordagem pudesse ser, era mecânica. Por mais dedicadas e obstinadas que suas terapeutas fossem não vislumbravam qualquer contato além de um SIM ou um NÃO representados por uma ou duas piscadas do seu único olho funcionante. Isto, levando-se em conta a otimista possibilidade de que aquele homem tivesse mantido a sua cognição intacta.  Assim como uma criança não pede para nascer, ele também não pedira aquilo para si, mas, ali estava ele: indefeso, vítima de uma tragédia pessoal, que, sem aviso prévio, o enclausurou dentro do seu próprio corpo.
Ele só dominava os movimentos de um de seus olhos e absolutamente nada mais. A interação com o mundo nestes casos é mínima. E por que não dizer, intuitiva?
Mas, afinal de contas, que assunto está em pauta?


Estamos falando de um homem adulto, jovem, um bon vivan, alto executivo, amante da vida (e a vivia intensamente) e, principalmente, amante da liberdade. Aos 43 anos, acometido de um acidente vascular encefálico – AVE de consequências devastadoras, depois de alguns dias de coma, este homem se depara com a impossibilidade irreversível de se mover e de falar. Esta limitação não permitia mais que enxergasse o mundo, e até a vida, de maneira ampla, completa, como antes. Agora, ele vê o ambiente ao seu redor dentro de uma moldura formada pela limitada amplitude visual do seu olho intacto e pela perspectiva promovida pelo posicionamento de sua cabeça – este último não dependendo de sua vontade.
Estando preso dentro de si mesmo, uma prisão cruel que somente permitia o piscar de um único olho, “Quero morrer, preciso me matar”  foi o primeiro pensamento após a constatação da magnitude de sua limitação e impotência. Mas até para isto ele era incapaz!!! Como fazê-lo se estava imóvel?
Depois de algum tempo de autopiedade, com a nobre e incessante ajuda de uma de suas terapeutas, percebeu que era possível expressar as únicas coisas verdadeiramente livres em sua existência naquele momento: a imaginação e as lembranças. E em um código criado entre eles, este homem conseguiu finalmente a tão improvável comunicação com o mundo através do movimento ocular palpebral do olho intacto associado à pronúncia das letras do alfabeto pelo interlocutor.
Agora, já percebendo o valor da vida, das pessoas que o rodeiam, da sua condição de pai, entre tantas outras reflexões, este homem realmente tornou-se personagem principal de sua própria vida. E pasmem!!! Nosso herói passou a se comunicar com as pessoas utilizando o mecanismo já descrito. Interagia com seus filhos, com seus amigos e familiares, fazia valer as suas vontades, teve a oportunidade de expor sentimentos e, literalmente, num piscar de olho retomou a sua personalidade.  E não se contentando com o que já havia conquistado, passou a comunicar-se com o mundo desde que publicou o seu primeiro livro.

A seção “Qualquer coincidência é mera semelhança” de hoje é especial. Não haverá nomes fictícios em nome da proteção da identidade do protagonista por se tratar de uma homenagem a história real de Jean-Dominique Bauby, poderoso editor da revista Elle e que sofreu um AVE de grandes proporções e que, em um segundo momento, resolveu fazer o melhor uso daquilo que lhe restara: o piscar de um olho, a imaginação, sua memória e a sede de transpor as maior das barreiras de sua vida – o seu próprio corpo inerte. Tudo isto para mudar a sua vida e levar ao mundo, inclusive aos profissionais de saúde, a uma profunda reflexão do cuidado com os pacientes de comunicação limitada, inclusive a gestual.
Esta comovente história inspirou o filme “O escafandro e a borboleta”, ganhador de dois Globos de Ouro e Melhor filme estrangeiro; quatro indicações ao Oscar, ganhador do Festival de Cannes (melhor diretor – Julian Schnabel)

2 comentários:

  1. Que história fantástica Dani. Parabéns pelo belíssimo conteúdo do seu blog!

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  2. Obrigada, Léo,
    Vindo de vc, o comentário torna-se mais que um elogio. Configura a certeza que o nosso blog está no caminho certo.
    Muito obrigada por prestigiar este trabalho que desenvolvo com tanto amor.

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