Dentro de um enquadramento rígido e monótono, ele passou a
ver o mundo.
Não importavam as suas vontades, medos, os seus desejos,
suas vergonhas... Nada era percebido. Talvez, parte disto era suposto pela
equipe que passou a acompanhá-lo. Agora, uma nova forma de alimentação,
medicação, rituais de higiene e reabilitação tornaram-se parte de sua rotina.
Por mais humanizada que aquela abordagem pudesse ser, era mecânica. Por mais
dedicadas e obstinadas que suas terapeutas fossem não vislumbravam qualquer
contato além de um SIM ou um NÃO representados por uma ou duas piscadas do seu
único olho funcionante. Isto, levando-se em conta a otimista possibilidade de
que aquele homem tivesse mantido a sua cognição intacta. Assim como uma criança não pede para nascer,
ele também não pedira aquilo para si, mas, ali estava ele: indefeso, vítima de
uma tragédia pessoal, que, sem aviso prévio, o enclausurou dentro do seu próprio
corpo.
Ele só dominava os movimentos de um de seus olhos e
absolutamente nada mais. A interação com o mundo nestes casos é mínima. E por
que não dizer, intuitiva?
Mas, afinal de contas, que assunto está em pauta?
Estamos falando de um homem adulto, jovem, um bon vivan, alto executivo, amante da
vida (e a vivia intensamente) e, principalmente, amante da liberdade. Aos 43
anos, acometido de um acidente vascular encefálico – AVE de consequências
devastadoras, depois de alguns dias de coma, este homem se depara com a
impossibilidade irreversível de se mover e de falar. Esta limitação não
permitia mais que enxergasse o mundo, e até a vida, de maneira ampla, completa,
como antes. Agora, ele vê o ambiente ao seu redor dentro de uma moldura formada
pela limitada amplitude visual do seu olho intacto e pela perspectiva promovida
pelo posicionamento de sua cabeça – este último não dependendo de sua vontade.
Estando preso dentro de si mesmo, uma prisão cruel que
somente permitia o piscar de um único olho, “Quero morrer, preciso me matar” foi o primeiro pensamento após a constatação
da magnitude de sua limitação e impotência. Mas até para isto ele era
incapaz!!! Como fazê-lo se estava imóvel?
Depois de algum tempo de autopiedade, com a nobre e
incessante ajuda de uma de suas terapeutas, percebeu que era possível expressar
as únicas coisas verdadeiramente livres em sua existência naquele momento: a
imaginação e as lembranças. E em um código criado entre eles, este homem conseguiu
finalmente a tão improvável comunicação com o mundo através do movimento ocular
palpebral do olho intacto associado à pronúncia das letras do alfabeto pelo
interlocutor.
Agora, já percebendo o valor da vida, das pessoas que o
rodeiam, da sua condição de pai, entre tantas outras reflexões, este homem
realmente tornou-se personagem principal de sua própria vida. E pasmem!!! Nosso
herói passou a se comunicar com as pessoas utilizando o mecanismo já descrito.
Interagia com seus filhos, com seus amigos e familiares, fazia valer as suas
vontades, teve a oportunidade de expor sentimentos e, literalmente, num piscar
de olho retomou a sua personalidade. E
não se contentando com o que já havia conquistado, passou a comunicar-se com o
mundo desde que publicou o seu primeiro livro.
A seção “Qualquer coincidência é mera semelhança” de hoje é
especial. Não haverá nomes fictícios em nome da proteção da identidade do
protagonista por se tratar de uma homenagem a história real de Jean-Dominique
Bauby, poderoso editor da revista Elle e que sofreu um AVE de grandes
proporções e que, em um segundo momento, resolveu fazer o melhor uso daquilo
que lhe restara: o piscar de um olho, a imaginação, sua memória e a sede de
transpor as maior das barreiras de sua vida – o seu próprio corpo inerte. Tudo
isto para mudar a sua vida e levar ao mundo, inclusive aos profissionais de
saúde, a uma profunda reflexão do cuidado com os pacientes de comunicação
limitada, inclusive a gestual.
Esta comovente história inspirou o filme “O escafandro e
a borboleta”, ganhador de dois Globos de Ouro e Melhor filme estrangeiro;
quatro indicações ao Oscar, ganhador do Festival de Cannes (melhor diretor –
Julian Schnabel)
Que história fantástica Dani. Parabéns pelo belíssimo conteúdo do seu blog!
ResponderExcluirObrigada, Léo,
ResponderExcluirVindo de vc, o comentário torna-se mais que um elogio. Configura a certeza que o nosso blog está no caminho certo.
Muito obrigada por prestigiar este trabalho que desenvolvo com tanto amor.